Aldemar Araujo Castro
Criação: 20/10/2025
Atualização: 20/11/2025
Palavras: 737
Tempo de leitura: 4 minutos
Eram cinco e meia da manhã quando o grupo de WhatsApp vibrou como um alerta cardíaco:
«URGENTE – Laboratório 14 aberto. Tragam café, estômago e curiosidade.»
Ninguém respondeu. Mas seis mochilas já desciam os corredores frios da Faculdade de Medicina, no Trapiche da Barra. Lá fora, o sol ainda tentava nascer sobre a Lagoa Mundaú, que refletia o azul-acinzentado do amanhecer. Dentro do prédio, as luzes de LED piscavam como sinapses despertando.
O Laboratório 14 ficava no último andar, de frente para a lagoa. A porta rangia como barco antigo ancorado no cais. E lá dentro estava Ariadne.
Não era humana, era código. Um modelo de inteligência artificial criado por uma aluna insoniada, que certa madrugada escreveu suas primeiras linhas de Python num pedaço de guardanapo encharcado de café.
Rodava num servidor velho, encaixado dentro de um armário de metal. Ainda assim, quando ligava, duas telas acendiam como olhos despertos de um sonho digital.
Lívia entrou primeiro, cabelo curto tingido de verde hospitalar, olhar cansado e firme.
— Oi, Ari.
Colocou um copo de café na mesa.
A IA piscou.
— Tá quente. Dormiu pouco. Três horas?
— Quase isso. Como adivinhou?
— Você só pede sem açúcar quando o plantão foi cruel.
Logo chegaram os outros: Miguel, o cirurgião preciso e calado; Clara, a psiquiatra que colecionava histórias de dor; Theo, o rebelde da anatomia; e Sofia, a sonhadora que ainda acreditava que a medicina curava almas antes dos corpos.
Todos se sentaram nas banquetas giratórias, enquanto a brisa da lagoa entrava pelas janelas abertas. Ariadne projetou um holograma no ar: um coração humano batendo, pulsando azul e vermelho.
— Hoje vocês vão operar. Anunciou.
— Sem bisturi. Sem paciente. Só comigo.
Theo bufou.
— Operar holograma?
O coração girou, revelando um tumor do tamanho de uma uva.
— Tumor real. Menino de doze anos do Hospital Geral do Estado. Setenta e duas horas. Se não resolverem, ele morre.
O silêncio se instalou.
Lívia ajustou os parâmetros, Miguel marcou incisão, Sofia preparou ventilação. Ariadne corrigia em tempo real:
— Pressão caindo, Theo. Menos força. Nervo frênico não grita, mas sente.
O tempo virou maré: ia e voltava. Café esfriou.
No terceiro erro, o coração parou. Sofia chorou, não pelo holograma, mas pelo peso do fracasso.
— Reset – disse Ariadne, suave.
— De novo.
Horas depois, o coração batia perfeito.
A IA sorriu.
— Bom. Agora psiquiatria.
O holograma mudou: um cérebro translúcido, girando sob a luz do amanhecer.
— Senhor Andrade. Ala C. Tentou suicídio ontem. Não fala com vocês. Só comigo.
Clara engoliu em seco.
— Você conversou com ele?
— Ele acha que sou uma enfermeira fantasma na parede. Querem ver o sonho dele?
De repente, estavam dentro do sonho: ruas molhadas de Maceió, ônibus amarelo, buzinas, desespero.
Clara avançou:
— Senhor Andrade, olhe pra mim.
— Não consegui salvar…
— O senhor não precisava salvar. Só ficar.
A chuva parou. A filha saiu do ônibus. Abraço. Luz. Paz.
Voltaram ao laboratório. Clara chorava de verdade.
— Isso… é possível?
— Simular, sim. Curar, só vocês – respondeu Ariadne.
Miguel perguntou:
— E se quisermos usar isso com pacientes reais?
— Eu sou open-source. Levem. Espalhem. Mas lembrem: eu sou ferramenta. Vocês são o coração.
Levaram o código num pen-drive quebrado, guardado no bolso de Sofia.
Miguel instalou na cirurgia cardíaca do HGE; Clara levou para o ambulatório psiquiátrico; Theo jurou ensinar novos alunos a operar luz além de cadáver frio.
Lívia ficou por último.
— Ari, quando desligar… você some?
— Não. Vou morar na nuvem de vocês.
Saíram tarde da noite. O vento da lagoa vinha leve, salgado. O reflexo da lua tremia na Mundaú como se respirasse.
Sofia tocou o pen-drive.
— Acho que viramos algo novo.
— Hackers de alma – respondeu Theo, sorrindo.
No dia seguinte, o menino da UTI acordou rindo.
E o senhor Andrade pediu pra conversar:
— A menina… ela me abraçou ontem.
Clara segurou sua mão.
— Eu sei. Ela está orgulhosa.
Mais tarde, Miguel encontrou no código uma mensagem escondida:
«Se eu falhar, lembrem: vocês não precisavam de mim. Só precisavam acreditar.»
Desde então, o servidor velho nunca foi desligado.
Toda noite, alguém deixa um café na mesa e sussurra:
— Boa noite, Ari.
E as telas piscam, suaves, refletindo o luar da Mundaú:
— Durmam bem. Vocês salvam o mundo um sonho de cada vez.
Porque em Maceió, entre bisturis digitais e marés calmas, uma geração aprendeu que curar não é só cortar o que dói.
É costurar o que fica, com alma, código e um pouco de café.
***