Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saude/inde21032011.htm
São Paulo, segunda-feira, 21 de março de 2011
Conflito de interesses marca pesquisas sobre menopausa
Estudos pró-reposição hormonal foram feitos por médicos ligados a laboratórios
Revisão de 50 trabalhos científicos sobre o tratamento controverso aponta problema ético na maioria deles
MARIANA VERSOLATO
DE SÃO PAULO
A maioria dos estudos favoráveis à terapia de reposição hormonal para tratamento da menopausa foi escrita por autores que têm ligações com a indústria de remédios.
Significa que pesquisadores pró-reposição declararam ter recebido pagamentos de laboratórios por palestras ou financiamento de estudos.
É o que revela uma revisão de 50 pesquisas sobre a terapia, publicadas por dez autores entre 2002 e 2006.
O período foi escolhido por causa da publicação do estudo Women Health’s Initiative, em 2002, mostrando que a reposição aumenta riscos de câncer da mama e de doenças cardiovasculares.
Oito dos dez autores afirmaram ter recebido pagamentos da indústria. Dos 50 artigos analisados, 32 foram considerados favoráveis à terapia, entre os quais 30 foram escritos por autores com conflitos de interesse.
A análise foi feita por pesquisadores do Georgetown University Medical Center, em Washington, e publicada no “PLoS Medicine”.
Segundo uma das autoras, a médica e professora de farmacologia da Georgetown University Adriane Fugh-Berman, tons promocionais em relação a drogas devem ser vistos com desconfiança.
“Promoção, em geral, é inconsistente com ciência. Pode significar uma influência do marketing da indústria sobre o artigo, mas isso é difícil de provar”, disse à Folha.
César Fernandes, presidente da comissão de climatério da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetricia, diz que médicos devem ligar o “desconfiômetro” para esses estudos.
“É óbvio que há marketing agressivo das farmacêuticas, elas querem influenciar os médicos”, diz Fernandes.
A existência dessas relações e as conclusões da revisão, porém, não desqualificam autores sérios nem colocam a eficácia do tratamento à prova, segundo Fernandes.
“Não estamos falando de pesquisadores irrelevantes. Será que não são os médicos mais consultados pelas empresas por suas contribuições para a literatura?”
Já Berman diz que eles são selecionados para palestras e consultorias porque o que dizem apóia a mensagem da indústria. “A indústria cria um falso consenso na comunidade médica porque vozes racionais são abafadas.”
Mauro Haidar, chefe do setor de climatério da Unifesp, diz:”Se pensarmos assim sobre conflitos de interesse, não tem congresso. E há de ter a mesma desconfiança em relação a outras drogas.”
SOB MEDIDA
Alguns dos argumentos presentes nos estudos favoráveis dizem que os testes clínicos não devem guiar tratamentos individuais.
É o que pensa Fernandes. “Medicina não é feita no atacado, e sim caso a caso. Não é prêt-à-porter, é alta costura.”
Segundo ele, é preciso pesar a história da paciente, gravidade dos sintomas e prós e contras do tratamento.
“Nenhum remédio é bonzinho. Sempre há riscos, mas eles têm que ser informados”, diz Fernandes.
Para a autora da pesquisa, a reposição só é útil se os sintomas da menopausa forem muito incômodos. “Funciona bem para algumas, mas deve ser usado apenas em casos graves, ou os riscos superam benefícios.”
São Paulo, segunda-feira, 21 de março de 2011
ANÁLISE
Estatísticas são exatas, mas as interpretações humanas, não
HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA
A chamada medicina baseada em evidências se funda na estatística, a qual, sendo uma ciência exata, deveria ser capaz de nos fornecer algumas certezas, como responder de uma vez por todas se a terapia de reposição hormonal deve ser utilizada.
No mundo real, contudo, não só não encontramos tal nível de precisão como ainda topamos com trabalhos que desmentem o consenso da semana anterior para, alguns meses depois, serem eles mesmos questionados por outros estudos.
A boa notícia é que a estatística é inocente. Ela continua sendo uma ciência exata. O problema é que nós, seres humanos (médicos incluídos), não somos muito bons em processar as informações que ela nos fornece.
Dizemos que um trabalho tem significância estatística quando é improvável que seus resultados tenham sido produzidos só pelo acaso.
Mas o que entendemos por “improvável”? Evidentemente, é impossível ter 100% de certeza. De modo geral, quando temos 99% de significância ou mesmo 95%, nos damos por satisfeitos e afirmamos haver evidências em favor da nossa hipótese.
A questão é que raramente olhamos para o reverso desse número. No caso da significância em 95%, de cada cem testes que fizermos, a estatística prevê que cinco estarão fora de alcance, podendo apresentar qualquer resultado. Num mundo que produz milhares de trabalhos científicos por semana, é uma questão de tempo até que surja um estudo que contradiz os anteriores.
A “solução” da comunidade médica tem sido apostar nas metanálises, nas quais se avaliam grupos de estudos mais ou menos parecidos.
E as sutilezas da estatística não são o único nem o maior problema. Por vieses neurológicos diversos, as pessoas (médicos inclusive) dão mais valor a instintos e percepções afetivamente determinadas que a dados científicos.
Em “O Andar do Bêbado”, o físico Leonard Mlodinov conta a história de um importante médico que, ao comentar um trabalho de US$ 12,5 milhões, que praticamente demonstrava que a popular combinação dos suplementos alimentares glucosamina e condroitina não era melhor do que placebos na prevenção da artrite, insistiu em afirmar que o tratamento era possivelmente benéfico.
Seu argumento, registrado nos arquivos da rádio pública dos EUA: “Uma das médicas da minha mulher tem um gato e ela diz que o gato não se levanta de manhã sem uma dose de glucosamina e sulfato de condroitina”.
Se em situações normais já é difícil trocar nossos instintos selvagens pelas abstrações dos estudos controlados, isso fica quase impossível quando esses instintos são reforçados pelos cheques da indústria farmacêutica.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saude/inde21032011.htm