Aldemar Araujo Castro
Criação: 20/09/2025
Tempo de leitura: 5 minutos (1010 palavras)
Era a quarta noite de caminhada. Havíamos partido de Maceió rumo ao rio Persinunga, que marca a divisa entre os estados de Alagoas e Pernambuco. A jornada já trazia no corpo de cada um a poeira dos quilômetros percorridos, o cansaço acumulado e as marcas deixadas pela chuva insistente que, naquela noite, parecia querer nos testar ainda mais. O grupo, formado por adultos e crianças, avançava em silêncio, o som dos passos misturado ao estalar das sandálias molhadas na lama e ao farfalhar das capas de chuva encharcadas.
Eu caminhava atrás, como médico responsável pelo grupo. A posição me permitia observar de longe, atento a qualquer sinal de cansaço extremo ou indisposição. Não era apenas uma função técnica: era também uma vigília silenciosa, um olhar que buscava prevenir antes de remediar.
A travessia do rio havia sido lenta, difícil, como se o próprio tempo tivesse se esticado naquela água barrenta que nos segurava pelas pernas. O frio castigava. Foi nesse cenário que, ao alcançarmos a outra margem, o inesperado rompeu a monotonia: uma criança de apenas nove anos começou a chorar desesperadamente.
O choro não era discreto, nem contido. Era um choro que sacudia o corpo inteiro, uma explosão de fragilidade que se espalhou pelo grupo. De imediato, os mais próximos o cercaram. Ofereceram carinho, atenção, palavras doces. Houve até quem massageasse seus pés, na tentativa de arrancar dali o motivo da dor. Aos poucos, o menino foi se acalmando. O pranto cessou, o corpo relaxou. Seguimos adiante.
Cinco minutos depois, porém, o choro voltou. E dessa vez ainda mais agudo, mais lancinante, como se o alívio anterior tivesse sido apenas um véu passageiro. O grupo, já cansado, hesitou. Um dos líderes, percebendo a gravidade da situação, não tentou novas massagens nem palavras de consolo. Decidiu trazê-lo até mim, que caminhava mais afastado, no fim da fila.
Vi o menino se aproximar. Vinha em prantos, os olhos vermelhos, o corpo encolhido pelo frio e pelo medo. Parei. Coloquei o joelho no chão, para que ficasse na altura dele. Ajoelhar-se diante de uma criança não é um gesto de submissão, mas de respeito: é dizer, com o corpo, “estamos no mesmo nível”.
E ali, olhando em seus olhos marejados, eu disse no ouvido dele, sem que ninguém mais escutasse:
— Que porra é essa? Você está sentindo alguma coisa?
Ele ficou atônito. Talvez esperasse um novo colo, uma palavra de doçura. Mas encontrou firmeza, encontrou choque. O silêncio dele era o espaço exato para a minha próxima ação. Continuei:
— Eu vou tirar sua camisa molhada. Vou arranjar uma camisa seca para você. Vai se enxugar com uma toalha. Depois vou secar sua capa de chuva. Você vai comer mel de abelha, tomar água e caminhar na frente do grupo.
O menino me olhou assustado, mas também intrigado. Não havia ali pena, nem excesso de ternura. Havia clareza, direção, uma ordem prática. Fiz tudo como disse: tirei a roupa molhada, vesti a seca, cuidei da capa. Dei-lhe o mel, a água. E o posicionei à frente, como parte da vanguarda.
Não me surpreendeu o que aconteceu a seguir. Dez minutos depois, aquele mesmo garoto, que minutos antes chorava inconsolável, agora liderava a caminhada. Era o mais rápido, o mais disposto, quase como se o choro tivesse sido expurgado pela nova postura que lhe foi imposta.
Enquanto o grupo avançava, fiquei refletindo. O que havia feito não era apenas socorro físico. Era um gesto pedagógico. A infância é feita de acolhimento, sim, mas também de limites e desafios. E naquele momento, em meio à chuva, à lama e ao frio, a vida me deu a oportunidade de ensinar uma lição que vai além da medicina: a formação de um homem.
Educar não é proteger de todo sofrimento. É, muitas vezes, ensinar a enfrentá-lo. É mostrar que, dentro do desconforto, existe uma força que ainda não foi descoberta. O ambiente era seguro e controlado; estávamos em grupo, atentos, prontos para intervir em qualquer emergência. Justamente por isso, aquele era o lugar ideal para que o menino aprendesse, cedo, que os desafios não são barreiras intransponíveis, mas convites para crescer.
Enquanto caminhava, pensei nos paradoxos da vida. Às vezes, um colo aquece. Mas em outras, o colo pode enfraquecer, pode alimentar a ideia de que a fragilidade é o único caminho. O menino já havia recebido carinho, massagem nos pés, palavras doces. Nada disso foi suficiente. Faltava-lhe a provocação que o tirasse da posição de vítima e o colocasse diante da própria responsabilidade.
O choro era real, o sofrimento era verdadeiro. Mas também era uma encruzilhada. Se ele permanecesse nele, seria sempre lembrado como o menino que chorou na travessia. Ao se superar, ao assumir a dianteira, ele se transformava em algo maior: em exemplo para os outros, em protagonista da própria jornada.
Naquela noite, aprendi que o papel de um líder, seja médico, professor ou guia, não é apenas curar feridas visíveis. É, sobretudo, enxergar a potência escondida em cada pessoa e criar condições para que ela floresça. Nem sempre o remédio é doce. Às vezes, o que cura é a firmeza, a palavra dura, o choque necessário para despertar.
O menino seguiu em frente. Não sei se recordará, no futuro, daquela noite chuvosa, da roupa seca, do mel adocicado no paladar cansado. Talvez não se lembre de cada detalhe. Mas acredito que algo ficou gravado nele: a sensação de que, diante do choro, é possível levantar, caminhar e, mais do que isso, liderar.
E eu, por minha vez, também não saí ileso. A cena me ensinou que liderar não é escolher entre dureza e ternura. É saber equilibrá-las, como quem maneja dois instrumentos em harmonia. O verdadeiro mestre não conforta demais nem exige além da conta. Ele lê o momento, percebe a brecha certa e age para que o outro cresça.
Na beira do rio Salgado, naquela quarta noite, não formamos apenas quilômetros percorridos. Formamos caráter. E descobri, mais uma vez, que o inesperado é sempre o grande professor.
Moral da História
Educar não é evitar o sofrimento, mas ensinar a enfrentá-lo com coragem. O verdadeiro mestre não oferece atalhos, mas mostra ao aprendiz que ele já possui, dentro de si, a força para atravessar o próprio rio.