Aldemar Araujo Castro
Criação: 26/09/2025
Atualização: 06/10/2025
Palavras: 868
Tempo de leitura: 4 minutos
Era o meio da tarde na sala da disciplina de cirurgia vascular da UNIFESP. Aquele espaço, simples e funcional, carregava uma aura de seriedade que transcendia as paredes. Ali não se tratava apenas de casos clínicos e técnicas cirúrgicas: era também um espaço de transmissão de valores, estratégias e sabedoria.
Eu estava sentado diante do professor Emil Burihan, figura respeitada e admirada. Naquele tempo, além de sua liderança natural, Emil era também o chefe do Departamento de Cirurgia. Conversávamos sobre uma tese acadêmica da qual ele faria parte da banca examinadora. O ambiente era calmo, quase solene. Falávamos de ciência, de metodologia, de argumentos. Eu me sentia privilegiado por ter acesso tão próximo a um mestre daquela estatura.
De repente, a porta se abriu de forma abrupta. A entrada foi rápida, quase violenta, como uma rajada de vento que desorganiza a tranquilidade. Era o professor Ênio Buffolo. Sua expressão era dura, os passos firmes. Nas mãos, trazia um papel dobrado que parecia pesar mais do que algumas folhas poderiam justificar. O clima mudou instantaneamente.
Instintivamente, levantei-me da cadeira. Pensei que, por respeito à situação, deveria me retirar. Mas Emil, sem levantar a voz, apenas com a autoridade tranquila que lhe era própria, disse:
— Sente-se.
Obedeci. Permaneci ali, testemunha inesperada de um momento que, eu não sabia ainda, marcaria profundamente minha vida.
O professor Ênio não demorou a revelar o motivo de sua chegada. Com palavras rápidas e tom firme, apresentou seu pedido de demissão da instituição. Explicou suas razões, falou com convicção, talvez movido pela irritação ou pelo cansaço de circunstâncias que naquele instante lhe pareciam insuportáveis.
Emil não o interrompeu. Não rebateu, não argumentou. Apenas o ouviu em silêncio. O ambiente parecia suspenso no tempo. Eu observava atônito: um professor decidido a romper laços, outro professor, chefe do departamento, recebendo a notícia com serenidade.
Quando a fala terminou, Emil pegou o documento. Não assinou, não comentou. Apenas abriu a gaveta de sua mesa, colocou o pedido de demissão dentro dela e, com a calma de quem já sabe o que virá, encerrou o assunto. Ênio saiu da sala, deixando atrás de si um silêncio denso.
Eu, ainda tomado pela tensão da cena, não contive a pergunta:
— Professor, o que se faz numa situação como essa?
Ele me olhou com a tranquilidade que só os sábios têm e respondeu:
— Na semana que vem, ele vai voltar de cabeça fria para pedir este documento de volta. E eu o entregarei a ele.
Aquilo me pareceu quase uma profecia. Como alguém poderia prever com tanta certeza o comportamento de outro? Como podia ter tanta convicção de que a fúria do momento daria lugar à reflexão? Eu não sabia, mas Emil sabia. Sua experiência, sua leitura fina das pessoas e das circunstâncias, davam-lhe essa segurança.
Os dias se passaram. Confesso que fiquei ansioso, aguardando para ver se a previsão se concretizaria. Parte de mim duvidava, parte queria acreditar.
Na semana seguinte, o inevitável aconteceu. O professor Ênio voltou. Seu semblante já não era o mesmo. Entrou na sala com menos pressa, com menos peso nos ombros. E, com a humildade que só o tempo pode trazer, pediu de volta o pedido de demissão.
Sem surpresa, Emil abriu a gaveta, retirou o papel intacto e o devolveu, como se entregasse não apenas um documento, mas a oportunidade de recomeçar. A cena foi breve, mas carregada de significado.
Eu estava lá. Vi com meus próprios olhos. Não foi apenas uma lição administrativa, mas uma aula de vida.
A Lição Aprendida
Naquele dia compreendi algo que nenhuma disciplina formal ensinaria. As decisões impulsivas, tomadas no calor das emoções, muitas vezes não refletem nossa verdadeira vontade. Um líder sábio sabe que, em certos momentos, a melhor resposta não é a imediata, mas a paciência.
Emil não discutiu, não contrariou, não aumentou a chama. Preferiu esperar a tempestade passar, confiando que o tempo faria o trabalho silencioso de clarear a mente e acalmar o coração. Sua gaveta tornou-se, naquele momento, mais do que um móvel: foi um símbolo de prudência, de contenção e de fé no retorno da razão.
Eu saí daquela sala diferente do que entrei. Entendi que liderar não é reagir sempre com prontidão, mas ter a sabedoria de escolher o momento certo de agir. Aprendi que muitas vezes é mais sábio guardar um documento do que assiná-lo, mais sensato calar do que responder, mais estratégico esperar do que decidir de imediato.
Anos depois, em minha própria vida profissional e pessoal, vi-me diante de situações semelhantes. Alunos exaltados, colegas irritados, pacientes desesperados. Em muitos casos, lembrei da gaveta de Emil. Respirei fundo, segurei a pressa de reagir, e esperei. Na maioria das vezes, o tempo se encarregou de resolver o que parecia insolúvel.
Moral da História
O verdadeiro mestre ensina não apenas com palavras, mas com atitudes silenciosas que ecoam para sempre. A sabedoria não está em responder rápido, mas em saber esperar o tempo certo. A paciência pode ser a maior arma contra o impulso.
E assim, naquela tarde comum que se transformou em extraordinária, aprendi que uma simples gaveta pode conter não apenas um papel, mas a lição de uma vida inteira.
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