A Estratégia do Mestre   Recently updated !


Era uma tarde comum na Universidade Federal de São Paulo. Os corredores da UNIFESP fervilhavam de estudantes, professores e residentes. O vai-e-vem apressado era interrompido aqui e ali por pequenos grupos que discutiam casos clínicos, revisavam artigos ou simplesmente trocavam confidências de rotina acadêmica. O ambiente carregava o peso da tradição de uma instituição que há décadas formava gerações de médicos. Para mim, era apenas mais um dia. Sem compromissos programados, eu caminhava sem pressa, deixando a mente vagar, quando o acaso me reservou um encontro que mudaria minha trajetória.

No meio da movimentação, surgiu à minha frente o professor Saul Goldenberg. Figura imponente, de fala rápida e olhar penetrante, ele não precisava de apresentações. Sua reputação precedia sua presença: um mestre respeitado, exigente, admirado e temido em igual medida. Encontrar-se com ele sem aviso era como ser surpreendido por um exame clínico inesperado — você nunca sabia se estava preparado para a pergunta que viria.

Antes mesmo que eu pudesse cumprimentá-lo adequadamente, ele disparou:
Aldemar, você gosta de cirurgia de emergência?

A pergunta, direta como uma incisão precisa, não me deixou margem para pensar. Respondi de imediato:
Sim, professor, gosto muito.

Ele não demonstrou surpresa. Pelo contrário, parecia já ter previsto minha resposta. Então insistiu:
E por que você gosta?

Respirei fundo. Era uma questão simples e, ao mesmo tempo, desafiadora. Expliquei que a atração pela cirurgia de emergência estava na sua imprevisibilidade. Nunca sabíamos qual paciente chegaria, em quais condições, nem qual seria a gravidade da doença. Cada caso era único, cada atendimento, um desafio novo. Essa instabilidade exigia raciocínio rápido, tomada de decisão imediata e sangue frio. Eu me sentia motivado justamente por isso: o gosto pelo desconhecido e pelo desafio.

Enquanto eu falava, o professor me observava em silêncio. Não me interrompia, apenas mantinha aquele olhar firme, como quem avalia não apenas as palavras, mas a convicção que as sustenta. Quando terminei, esperei alguma contestação, talvez uma lição teórica ou uma crítica à minha resposta. Mas ele permaneceu imóvel por alguns instantes. Então, de forma abrupta, encerrou a conversa com uma frase que mudaria tudo:

Hoje, às 20h, no auditório do décimo andar, você vai dar uma aula na pós-graduação para os alunos de mestrado e doutorado.

Fiquei sem reação. A surpresa foi tamanha que precisei de alguns segundos para compreender. Aquilo não era um convite. Era uma ordem. A partir daquele instante, não havia volta. O mestre havia decretado meu destino para aquela noite.

Senti um misto de emoções. Por um lado, o frio na barriga de quem se vê diante de um público qualificado, exigente, preparado para questionar cada detalhe. Eu, jovem, sendo lançado ao palco para enfrentar mestres e doutores. Por outro lado, a percepção clara de que aquela era uma oportunidade única. O professor Goldenberg havia me conduzido até ali não por acaso, mas como parte de uma estratégia que só agora eu começava a compreender.

Naquele instante, a metáfora do xadrez se tornou inevitável. Eu era apenas um peão movido no tabuleiro, e ele, como grande enxadrista, já sabia desde o início qual seria a jogada final. Quando perguntou se eu gostava de cirurgia de emergência, já tinha certeza da resposta. Quando me pediu a justificativa, sabia que eu me entregaria ao entusiasmo. E, quando me posicionou diante da plateia da pós-graduação, deu o xeque-mate.

Era impossível não admirar aquela astúcia. O mestre não apenas ensinava em sala de aula, mas criava situações que forçavam o discípulo a se superar. Ao invés de me oferecer mais um texto para estudar ou uma palestra para ouvir, colocou-me diante de um desafio real, onde a falha significava constrangimento, mas o sucesso abriria horizontes.

Passei o restante da tarde dividido entre ansiedade e preparação. Rascunhei ideias, organizei casos clínicos, repassei conceitos. O tempo parecia escorrer pelas mãos. Às 20 horas, lá estava eu, no auditório do décimo andar. A sala repleta, os olhares atentos, a expectativa palpável. Eu sabia que, além dos alunos de mestrado e doutorado, pairava invisível a presença do próprio Saul Goldenberg, observando cada movimento, cada palavra.

A aula aconteceu. Não recordo hoje cada detalhe, mas lembro da sensação de enfrentar algo muito maior do que eu. Lembro da tensão que se transformou em energia, do nervosismo que se converteu em foco. E, sobretudo, lembro do aprendizado: que os maiores desafios não vêm quando estamos prontos, mas quando somos surpreendidos.

Naquele dia, compreendi algo que carrego até hoje: o verdadeiro mestre não transmite apenas conhecimento; ele cria circunstâncias em que o aprendiz é forçado a descobrir a própria força. Saul Goldenberg poderia ter me explicado a importância de estar preparado, poderia ter falado horas sobre a imprevisibilidade da vida e da medicina. Mas preferiu outro caminho: lançou-me à prova, como quem joga o discípulo no mar profundo para que aprenda a nadar.

Esse episódio marcou minha vida. Não apenas me ensinou sobre cirurgia, mas sobre estratégia, liderança e formação humana. Ao longo da minha carreira, percebi que muitas vezes os alunos não precisam apenas de aulas ou livros. Precisam de desafios que os façam enfrentar seus medos e reconhecer suas capacidades. Replicar essa lógica tornou-se parte da minha prática docente: provocar, instigar, lançar o estudante em situações que o obrigam a crescer.

Hoje, ao recordar aquela tarde na UNIFESP, vejo com clareza que não era apenas uma conversa casual. Era um momento preparado com a maestria de um grande estrategista. Um xeque-mate pedagógico que moldou minha visão de ensino e de vida.

Assim eu vivenciei, assim eu compartilho com vocês.


Moral da História

O verdadeiro mestre não oferece atalhos nem respostas fáceis. Ele cria oportunidades inesperadas que obrigam o aprendiz a se superar. É no choque entre o medo e a coragem que nasce o aprendizado duradouro. E foi assim, naquela tarde aparentemente comum, que aprendi uma das maiores lições da minha vida: os desafios que nos surpreendem são, na verdade, presentes disfarçados.