Introdução
Era início de mais uma tarde comum na rotina acadêmica. Um relatório precisava ser preparado para a tese de doutorado em cirurgia plástica que o professor Emil Burihan avaliaria como membro da banca. Para mim, aquela tarefa já fazia parte do cotidiano: ler, analisar, organizar ideias e preparar observações que facilitassem o trabalho do mestre. Nada parecia diferente.
No entanto, a história daquela tese não seria apenas mais um relatório na pilha de documentos acadêmicos. Um detalhe inesperado transformaria a leitura em um enigma, e o enigma em uma lição que marcaria minha vida para sempre.
Desenvolvimento
Comecei a leitura com a atenção habitual. Tratava-se de um estudo experimental sobre retalhos cutâneos no dorso de ratos, tema recorrente na cirurgia plástica. As páginas iniciais seguiam o padrão: introdução, revisão da literatura, metodologia. Tudo fluía sem sobressaltos até que me deparei com uma fotografia.
Foi nesse instante que senti algo estranho. Aquela imagem não era nova para mim. Um “déjà vu” tomou conta da minha mente. A posição do animal, os pontos de sutura, os fios cortados no final do nó… cada detalhe me soava familiar, como se eu já tivesse visto aquela cena em outro contexto.
De início, hesitei. A memória poderia me trair; afinal, eu lia dezenas de teses todos os anos. Mas algo naquela foto não me deixava em paz. Resolvi investigar.
Dirigi-me à Bireme, biblioteca de referência em saúde, onde estavam armazenadas inúmeras teses defendidas ao longo dos anos. Folheei volumes, consultei arquivos, comparei imagens. Até que, para minha surpresa, lá estava: uma tese defendida no ano anterior, também na área da cirurgia plástica, trazia a mesma fotografia.
A semelhança não deixava margem para dúvida. O número de pontos do retalho era idêntico. A distância entre eles, milimetricamente igual. E, sobretudo, a maneira como as pontas dos fios haviam sido cortadas: a inclinação, o comprimento, o pequeno detalhe quase invisível da sobra do fio… tudo coincidia.
Clímax
Com a convicção de quem vê o óbvio diante dos olhos, procurei o professor Emil. Expliquei-lhe que a mesma imagem estava presente em duas teses distintas. Ele me ouviu com a serenidade habitual, mas exigiu que eu demonstrasse com clareza a evidência.
Mostrei-lhe a coincidência ponto por ponto, fio por fio. E, por fim, apresentei a única explicação plausível: aquele animal deveria ter feito parte do grupo controle em ambos os trabalhos, o que justificaria — ainda que de modo duvidoso — o uso da mesma fotografia.
Chegou o dia da defesa pública. O auditório estava cheio, a tensão era perceptível. Emil, implacável em sua postura, não deixou o detalhe passar. Quando a tese foi apresentada, ele ergueu a voz e perguntou, de forma direta:
— Por que esta fotografia aparece em duas teses diferentes?
O silêncio tomou a sala. O candidato titubeou. O público aguardava, intrigado. E então, para minha surpresa, Emil prosseguiu:
— Quem descobriu isso foi o Dr. Aldemar, que está sentado ali.
Todos os olhares se voltaram para mim. O peso daquela revelação caiu sobre meus ombros como um facho de luz repentino. Eu, que até então me via como um auxiliar nos bastidores, era agora colocado no centro da cena, responsável por trazer à tona um detalhe que poderia comprometer toda a credibilidade de um trabalho científico.
Desfecho
O impacto foi imediato. A partir daquele momento, percebi que a função de quem analisa um texto acadêmico vai muito além da forma e do conteúdo. Trata-se de um exercício de vigilância ética. Uma fotografia, aparentemente banal, tinha o poder de revelar fragilidades profundas no processo de pesquisa.
Para mim, aquela experiência foi transformadora. Entendi que, na vida acadêmica, o verdadeiro valor está na capacidade de observar o detalhe que passa despercebido à maioria. Descobri também que a responsabilidade não se limita ao mestre que assina a banca; ela recai igualmente sobre cada colaborador, cada leitor atento, cada discípulo que auxilia no processo.
O episódio repercutiu em minha memória como um marco. Em muitas outras situações da carreira, lembrei-me daquela foto repetida e da coragem serena com que Emil a trouxe à tona. Aprendi que a verdade pode ser incômoda, mas precisa ser revelada. E que, às vezes, somos chamados a assumir publicamente aquilo que descobrimos em silêncio.
Moral da História
A grandeza de um mestre não está apenas no que ele ensina, mas em como expõe seus discípulos à verdade. E a grandeza de um discípulo está em reconhecer que, mesmo nos detalhes mais pequenos, repousa a essência da honestidade científica.