O Olhar do Cão   Recently updated !


Era uma manhã comum na faculdade de medicina. O laboratório de cirurgia experimental, simples e silencioso, carregava aquele ar solene dos lugares onde o aprendizado se mistura com a responsabilidade. As mesas de aço frio, os instrumentos dispostos em ordem, o cheiro característico de éter e antissépticos — tudo indicava que mais um treino de técnicas cirúrgicas estava prestes a começar.

Eu estava preparado, como sempre. O colega que dividia comigo aquelas jornadas costumava chegar cedo, quase antes da hora marcada. Havia entre nós uma cumplicidade discreta, fruto das muitas horas compartilhadas no treinamento, aplicando suturas, incisões e anestesias nos cães que serviam de modelo para nosso aprendizado. Mas naquele dia, algo fugiu ao previsto.

Primeiro passaram dez minutos. Nada. Depois vinte. Trinta. E ele não apareceu. O tempo, que no início parecia apenas atraso, foi se tornando um vazio incômodo. A ausência pesava mais que a própria tarefa que me aguardava. Sem telefone celular, sem meio de contato imediato, restava apenas esperar. Mas a espera tem seus limites. A cirurgia precisava ser feita, e eu, tomado pela rotina que exigia disciplina, iniciei o procedimento sozinho.

O cão repousava sob a anestesia. O silêncio da sala, quebrado apenas pelo som metálico dos instrumentos, fazia com que cada gesto ganhasse ainda mais peso. Havia algo estranho naquela solidão: embora estivesse cumprindo o protocolo, sentia que faltava algo. Faltava o olhar cúmplice do colega, a partilha do fardo. Faltava, sobretudo, uma presença humana naquele ambiente em que a vida de outro ser estava em jogo, ainda que fosse apenas um animal destinado ao treinamento.

Foram dias até que o reencontro acontecesse. Não no laboratório, mas na cantina da faculdade, espaço barulhento e colorido que contrastava com a frieza da sala de cirurgia. Ali, entre bandejas e conversas cruzadas, finalmente o vi. Seu semblante estava diferente, mais pesado, como quem carrega um conflito interno. Ao me aproximar, percebi que havia em seus olhos algo que não se explicava apenas pelo cansaço.

“Por que não foi aquele dia?”, perguntei, em tom meio de cobrança, meio de curiosidade.

Ele suspirou, como quem retira um peso do peito, e disse em voz baixa, quase confessional:
“Eu não aguentei. Não é a cirurgia em si, nem o esforço. É o olhar. O olhar do cão, quando aplicamos a anestesia. Aquele olhar profundo, fixo, que parece penetrar em nós… Eu não consigo mais suportar.”

Fiquei em silêncio. Nunca havia parado para pensar dessa maneira. Estávamos tão acostumados a encarar aqueles animais como parte do processo de formação, como instrumentos de aprendizado, que a ideia de que havia ali uma dimensão moral mais profunda soava quase como uma revelação.

Ele continuou:
“Cada vez que eu segurava a seringa, cada vez que a agulha penetrava, sentia que havia um julgamento silencioso naquele olhar. Não sei se era dor, medo ou apenas reflexo. Mas parecia um pedido. E eu não conseguia responder a ele.”

A partir daquela confissão, o que era apenas prática cirúrgica se transformou em dilema ético. Seria justo sacrificar animais em nome do avanço humano? Estaria a ciência legitimada a exigir tal preço? Era uma pergunta que ultrapassava os limites do bisturi e da sala experimental.

Buscando respostas, meu colega procurou um padre. Queria compreender se aquilo que sentia era apenas fraqueza pessoal ou se havia de fato um conflito moral legítimo. A conversa, segundo ele me contou, foi simples e profunda. O sacerdote o ouviu atentamente, deixou que despejasse suas angústias e, com a serenidade dos que sabem encontrar o essencial, disse-lhe:
“Se este treinamento tem por finalidade salvar vidas humanas, então ele se justifica. A dor momentânea de um animal não se compara ao bem maior de preservar vidas que virão a ser cuidadas por vocês. Mas nunca deixe de reconhecer o valor daquele olhar. Ele é o lembrete de que cada vida, por menor que pareça, merece respeito.”

Essa resposta lhe trouxe algum alívio. Talvez não tenha eliminado por completo a angústia, mas ofereceu um horizonte de sentido. Ele retornou aos treinos, embora com outro espírito. Já não via os cães apenas como modelos biológicos, mas como seres que, de certo modo, também contribuíam para a medicina.

Para mim, a lição foi ainda mais profunda. Aquele episódio me ensinou que a técnica, por mais refinada que seja, não é suficiente. A medicina não se constrói apenas com bisturis afiados e suturas precisas. Ela exige consciência. Exige o reconhecimento de que cada gesto carrega implicações éticas. O olhar do cão anestesiado tornou-se, para nós dois, um espelho. Ele refletia nossas escolhas, nossas intenções, nossas justificativas.

Com o tempo, compreendi que esse dilema não se restringia ao laboratório. Em muitos momentos da vida acadêmica e profissional, somos confrontados com decisões em que o bem de uns parece depender do sacrifício de outros. Nessas horas, o que nos guia não é apenas o conhecimento técnico, mas a capacidade de refletir, ponderar e, sobretudo, humanizar nossas escolhas.

O olhar daquele cão nunca mais me abandonou. Ele se tornou símbolo silencioso de uma verdade que a faculdade não ensinava nos livros: a ciência precisa de alma. Sem compaixão, sem ética, ela se torna fria, eficiente talvez, mas desumana.

Anos depois, em cada cirurgia que realizei, em cada decisão difícil que enfrentei, recordei-me daquela manhã solitária e daquele reencontro na cantina. O bisturi corta tecidos, mas são os olhos — humanos ou animais — que cortam a consciência.

Assim vivenciei, assim compartilho com vocês.


Moral da História

“O verdadeiro aprendizado não está apenas nas mãos que operam, mas nos olhos que nos interrogam. A ciência só se engrandece quando caminha lado a lado com a compaixão.